quinta-feira, 29 de agosto de 2013

De partida: a felicidade, a incerteza, e O Efeito

Quando começámos a pedalar em Casa Branca, o dia estava quase no fim. Não tínhamos conseguido organizar a carga toda a tempo do comboio das 9 e 50. Na verdade, só conseguimos terminar de organizar as coisas, para tirar umas fotografias da partida, 5 minutos antes de termos sair de casa para ir apanhar o comboio das 16 e 50. Somos desorganizados e normalmente atrasamos-nos para tudo! O ano passado só partimos para férias um dia depois do previsto... Desta vez até tinha feito com antecedência um plano de ação detalhado da logística preparatória, mas uma semana de trabalho complicada e um casamento no dia anterior fizeram com que a preparação não tivesse sido suficiente.

Há também a logística de meter e tirar bicicletas, atrelado, e bagagem, no comboio. Sendo um Inter-Cidades, só permite levar as bicicletas "desmontadas e acondicionadas". Tinha planeado detalhadamente todas as operações. Conseguia meter as duas bicicletas dentro de um saco, mas além das rodas era preciso tirar pedais, selins e pára-lamas. No total, entre transportar e (des)montar bagagem e bicicletas, demorei uma hora em cada extremo da viagem. Como a Filipa tinha que ficar com os miúdos, sobrava também para mim a tarefa de os pôr/tirar tudo do comboio, o que numa estação não terminal (Casa Branca) se antevia um problema. Felizmente os passageiros e o revisor esperararam pacientemente, mas não se pode dizer o mesmo das minhas costas!

As costas doridas fizeram-me lembrar os primeiros tempos a andar em bicicleta pela cidade. Há dificuldades! O corpo queixa-se. Há coisas que fazemos e pensamos, "nahh eu não estou pra isto." Mas que depois, se formos persistentes, se tornam fáceis... Prova superada!

Andar de comboio é bom. Em família habituada a viajar de carro, é especial. Os miúdos vão à vontade. Saltam pelos bancos, olham pela janela, caminham ao longo do corredor, e de carruagem em carruagem. Conversamos à mesa. Claro que dá mais trabalho, eles andam à solta! Mas a viagem marca. Se a andar de bicicleta se "viaja", a andar de comboio brinca-se e convive-se.



Dizia que começámos a pedalar apenas às 19.15. Os primeiros minutos foram de êxtase misturado com preocupação. Havia algumas incertezas: incerteza sobre se o equipamento se ia portar bem nos primeiros minutos de andamento. Incerteza sobre se a aventura ia correr pelo melhor. Incerteza sobre onde dormir nessa noite... Apesar das preocupações, conseguimos gozar o momento. "yeeaahhh!!! estamos a começar a nossa grande viagem!!!", consegui libertar.



Naquela noite, como nas outras, não tínhamos reservado dormida. Íamos preparados para, em último caso, acampar onde fosse preciso. Não o iríamos fazer levemente - nunca tínhamos acampado selvagem com os miúdos, e nunca o tínhamos feito antes sem ter o local estudado. Era um último recurso, mas dava uma certa tranquilidade de, se tudo corresse mal, termos uma tenda para dormir e comida para comer.

A primeira possibilidade nessa noite era ficarmos em Alcáçovas, a 13 quilómtetros. Na minha cabeça havia uma segunda possibilidade, na verdade uma vontade, que era ficarmos numa ribeira (Ribeira de S. Brissos) com que nos íamos cruzar ao fim de 7 quilómetros. Quando passámos por ela, era ainda mais bonita do que parecia na vista do Google Maps. Assim confirmei a minha vontade de ficar, e o Manuel já só falava em ir tomar banho. Tinha a ideia prévia de experimentarmos fazer bivaque logo no primeiro dia, para termos essa experiência num local que eu já tinha estudado, e ficarmos com uma melhor noção sobre se estávamos dispostos a repetir a experiência no resto da viagem. A Filipa estava bastante mais renitente, compreensivelmente!

O assunto ficou resolvido por fatores externos. O tipo de aproveitamento do solo em grande parte do Alentejo determina que os seus grandes terrenos sejam vedados em toda a extensão. Podemos andar quilómetros e quilómetros com uma vedação em ambos os lados da estrada. Ao contrário do que eu esperava, aquela ponte sobre a Ribeira S. Brissos também lá tinha a vedação nos quatro pontos de passagem possíveis.

Seguimos para Alcáçovas. Não faltava muito para anoitecer e não tínhamos local para ficar. Eu tinha encontrado na net o contato de um local para dormir, de orçamento acima do que queríamos gastar, mas que decidimos ainda assim usar para não termos que chegar tarde e sem sabermos onde passar a noite.

Há cinco anos, no extremo Oriente da Turquia, numa povoação remota junto ao Monte Ararat, tivemos uma daquelas experiências que normalmente só se vêm em filmes. Ao entrar na aldeia apareceu-nos uma dezena de crianças para nos ver, sorrir, e correr atrás de nós - porque éramos estrangeiros, ou porque vínhamos num automóvel, talvez as duas coisas, não sabemos bem. Esse momento marcou-nos particularmente nessa viagem. É daquelas coisas que já não é possível experienciar aqui em Portugal há várias décadas... exceto se se andar a viajar em bicicleta com um atrelado e crianças pequenas!

Alcáçovas foi a primeira povoação por onde passámos na nossa viagem, e o impacte da nossa presença foi evidente. Um senhor aplaudia à porta de uma loja. Mais à frente outros comentavam à nossa passagem, "Vão dois!" Quando finalmente perguntámos a alguém na rua onde era a localização do nosso local para dormir, sentimos definitivamente O Efeito!... Rodeados por todos os lados de senhoras de idade, tentávamos explicar-lhes as maravilhas daquele modo de viajar. No dia seguinte, a dona do empreendimento em que ficámos, a quem não chegámos a ver, telefonou-nos de propósito para nos dizer que se tinha cruzado connosco na estrada no dia anterior (ia a caminho de Lisboa), que tinha ficado muito feliz por termos dormido no seu empreendimento, e que podíamos usar a piscina o resto do dia todo (Varandas do Montado, recomenda-se!). Alcáçovas é uma vila muito bonita e interessante, mas acabou por ser O Efeito que mais nos marcou na passagem por ali.

Em vez do campismo selvagem, calhou-nos um fantástico duplex com piscina e vista para os montes do Alentejo!!   "Estamos a habituar-nos muito mal para o resto da viagem", comentei com ironia à Filipa. Ele respondeu que não, e veio a verificar-se que tinha razão...



Anterior: A chegada! (João)                                                       Seguinte: para breve...

domingo, 25 de agosto de 2013

A chegada!

Era Verão de 2005, numa encosta bastante inclinada de uma montanha de Andorra, e o Zé Carlos, com uns sapatos de vela calçados, atirava-se às pernas da Filipa para evitar que ela continuasse a escorregar pela encosta abaixo. Encontrávamos-nos a acampar 500 metros de altitude abaixo, e a seguir ao almoço tínhamos decidido experimentar subir ao pico da mesma montanha. Estávamos de tal forma impreparados e inconscientes em relação ao desafio, que a Filipa nem se lembrou de mudar de sapatos. Mais acima, perante as dificuldades, o Zé trocou de sapatos com ela para a ajudar. Não conseguimos chegar ao topo. Aliás, por pouco não tivemos que passar a noite lá em cima, porque era quase de noite e tínhamos perdido o trilho de onde tínhamos partido. Por sorte, encontrámos outro trilho que nos levou, já pela noite dentro, à estrada que ia dar ao nosso parque de campismo.

Mais ou menos 8 anos depois, estava o Zé Carlos na varanda de casa dele em Faro a bater palmas e a assobiar! Éramos nós a chegar da nossa "grande" viagem em bicicleta, entre Casa Branca e Faro, com os nossos dois filhos pequenos. A finalização da viagem em casa do Zé tinha algo de simbólico. Foi juntamente com ele que, depois da subida atabalhoada àquela montanha, comecei a sonhar realizar grandes aventuras de exploração da natureza. Sonhos irrealizados para mim, mas entretanto realizados por ele... A mais recente tinha sido há 2 meses no Evereste. Quando me contou acerca desta, como de outras histórias, lá me queixava eu que ter filhos era espetacular mas que me impedia de fazer certas coisas, como fazer viagens mais aventurosas.

"Invejo-vos, quero fazer o mesmo!" Disse o Zé quando lhe contei ao telefone os nossos planos. Viajar de bicicleta em Portugal com crianças é muito pouco comum, o que lhe atribuía uma certa sensação de pioneirismo (e uma incerteza um pouco desconfortável), mas ter um homem de aventuras a dizer que nos invejava dava-lhe um sabor especial...



Poucos minutos antes de chegarmos a casa do Zé e da Tânia, pela primeira e única vez na nossa viagem de 315 quilómetros cruzámo-nos com outros cicloturistas! Acenámo-nos mutuamente, tão entusiasmados com a presença de outros cicloturistas como contidos no aceno. Era um casal um pouco mais jovem que nós. Pelo equipamento que traziam, deviam ser também principiantes. Poderíamos ter sido nós poucos anos antes, se a bicicleta tivesse vindo ao nosso encontro mais cedo. Imaginei que, ao cruzarem-se connosco ali, isso tivesse ajudado a tirar-lhes aquela ideia de que depois de se ter filhos acabam-se os outros prazeres, e se tivessem decidido nessa noite a ir em frente!

O facto de, em pleno início de Agosto, apenas nos termos cruzado com os primeiros ciclistas viajantes ao fim de 3 centenas de quilómetros, indica que os caminhos por onde andámos são pouco comuns entre cicloturistas. Uma escolha de percurso realizada por critérios pouco convencionais levou-nos efetivamente a locais que não são dos mais trilhados. Em diversos caminhos, paralelos à fronteira com Espanha, andávamos muitos quilómetros sem ver vivalma, numa sensação de fim do Mundo.

Naturalmente que, se ver cicloturistas por aqueles lados já deve ser algo digno de registo, tornávamos-nos definitivamente o centro das atenções quando os curiosos espreitavam para dentro do nosso Croozer e viam lá dentro o Manuel e o Vasco! Um conjunto de velhotas à nossa volta (acontecimento repetido): "Nunca tinha visto uma coisa dessas. Que amores que eles vão!" "Ah eu vi uma coisa dessas no outro dia na televisão, era um senhor que levava os filhos à escola" (Seria certamente o Gonçalo Peres! Pela quantidade de gente que nos falou da reportagem, ela fez chegar a bicicleta em família a casa das pessoas!) "Mas vão com isso assim daqui ao Algarve??!" Aqui notava-se uma certa dúvida sobre a nossa lucidez... "Vai-se bem, não fazemos demasiados quilómetros por dia, as dificuldades existem mas ultrapassam-se. Os miúdos gostam!" Elas, com a voz emocionada: "Vão com Deus. Muitas felicidades para vocês!!" E lá seguíamos, eu e a Filipa com o conforto no coração que isto dá, o Manuel aliviado das atenções excessivas, e o Vasco a tentar processar tudo isto.


Anterior: A Primeira Vez (João)             Seguinte: De partida: a felicidade, a incerteza, e O Efeito

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A Primeira Vez (by João)


Nota: A Filipa desafiou-me a vir ao blog dela colocar a minha perspetiva dos acontecimentos! Aqui ficaram as minhas impressões sobre o pré-viagem :) Entre mim e ela, hão-de vir mais sobre a viagem.



Quando despertei para o turismo em bicicleta parecia já ser tarde de mais. Tínhamos agora dois filhos, e viagens longas em bicicleta pareciam uma miragem, talvez possível de realizar quando eles tivessem 18 anos e fossem à sua vida. A viagem que tinha feito o Verão passado em dia e meio entre Tróia e Aljezur seria o mais longe que normalmente conseguiria ir, talvez umas poucas vezes por ano. A desilusão com o tempo perdido não era pequena... afinal, tinha subitamente descoberto que “viajar” tinha que ser feito em bicicleta. Andar de carro não era bem “viajar”, apenas deslocar-me de um lado para o outro. Já em bicicleta segue-se a velocidade suficiente para apreciar o caminho, observar pormenores, parar e falar com alguém, sentir o ar na pele e os cheiros, ouvir os ruídos da natureza, pensar... Tive a sorte de poder viajar em quantidade razoável, mas podia ter “viajado” tanto mais. “Se soubesse o que sei hoje...”, pensei.

Não foi preciso procurar muito para conseguir evitar vir a dizer esta frase pela segunda vez. Tinha ouvido falar de histórias de famílias que percorriam continentes inteiros com os filhos. Primeiro imaginei os pais como ideólogos destravados e irresponsáveis. Depois de pesquisar um pouco mais percebi que para bastante gente aparentemente responsável viajar com filhos pequenos era normal. A viagem do Gonçalo Pais com o filho entre Lisboa e Badajoz abriu-me os olhos. Mas o Guga (7 anos) já pedalava o suficiente para as distâncias (e para a respetiva carga), e os meus tinham 18 e 42 meses. Não há problema, desde que os consigamos levar connosco, o que para nós já não era novidade... todos os dias para a escola, e em pequenas viagens de lazer. Comparativamente a outras grandes viagens, uma viagem em férias em bicicleta com a família parecia ser possível sem ser uma enorme tormenta.

Ainda antes de ter bem assente o meu sonho, foi a Filipa a colocá-lo num patamar realista ao falar-me de irmos fazer uma viagem de uns dias! Tornou-se um sonho realista e a dois.

Iria ser primeiro um passeio curto, de 3 ou 4 dias. Mas os meses passaram e chegaram as férias de Verão de 2 semanas. Confrontámo-nos com a ideia de as fazer em bicicleta e mais uma vez a Filipa não teve dúvidas em avançar.

A preparação da viagem nas semanas anteriores teve para mim um sabor daqueles que só se tem quando é a primeira vez que se faz alguma coisa nova e excitante! É um sentimento de ansiedade pelo começo, mas também de alguma incerteza e de exploração. Questões primárias que se colocam pela primeira vez. Quantos quilómetros podemos fazer por dia. Que tipo de percurso fazer? Será que aguentamos tantas noites a dormir em sítios diferentes. Que quantidade de carga podemos levar e onde? É preciso calibrar tudo isto - ainda mais com crianças - e existe uma dose de incerteza elevada devido à grande falta de experiência. É uma espécie de salto para o desconhecido que causa uma ansiedade boa.

Depois de pensar em várias hipóteses decidimos partir do médio Alentejo rumo ao Algarve, passando por diversos pontos de interesse. O motivo da escolha inicial foi a possibilidade de passarmos em duas casas de amigos. Mais tarde percebi que não seria viável passar na dos primeiros (em Ciborro) por ser demasiado a Norte para a distância que poderíamos percorrer, e que os segundos eventualmente não estariam por lá (Ficalho) na altura em que íamos passar. Mas já me tinha vinculado emocionalmente àquele percurso e aos seus pontos de paragem, e já não queria trocá-lo por outro.

O caminho teria que ter pontos de interesse para os miúdos. Havia que lhes ir dando motivos especiais de prazer entre as viagens! Como ambos adoram água, apontei para rios e barragens. Também nos ia saber bem a nós entre as pedaladas e o calor do Alentejo! Íamos então passar pela Barragem do Alvito, pela do Alqueva, pelas praias da Mina de São Domingos, pelo rio Guadiana, e finalmente pelo Algarve. Pelo meio várias povoações interessantes - gelados e castelos eram particularmente apelativos para o Manuel! Alcáçovas, Viana do Alentejo, Portel, Moura, Vila Verde de Ficalho, Pomarão, Sanlúcar de Guadiana, Alcoutim... Chegados ao Algarve logo se veria, talvez ir até casa de um amigo em Faro.

À parte o percurso traçado, não planeámos demasiado quando e onde íamos passar e dormir. Tinha que ser sem pressões. Não sabíamos quantos quilómetros seria viável percorrer diariamente sem se tornar um sacrifício. Se chegássemos em 10 dias ao Algarve seriam cerca de 25 km por dia em média, mas alguns dias tencionávamos não pedalar. Era uma distância aparentemente curta, mas não sabíamos como ia ser com os miúdos e muito peso. Além disso, o Alentejo, apesar de relativamente plano, prometia calor, muito calor! A ideia era pedalar com a alvorada e ao final da tarde...


Anterior: 2 semanas depois... (Filipa)                                          Seguinte: A Chegada! (João)


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

2 semanas depois...


Estamos de volta!!

Chegamos ontem a Lisboa após 2 semanas em que pedalamos desde Casa Branca até Faro. Conseguimos!!! E o mais incrível é que nem custou assim tanto, foi tão natural, tão bom, fez tanto sentido para nós que talvez por isso, tudo tenha corrido de forma tranquila, não existiram quedas, os miúdos e nós estivemos sempre bem e nem um furinho para mais tarde contarmos a história... houve sim alguma aventuras e afins... essas, em parceria com o João, em breve vamos contar.


Anterior: Família Bernardino On the road 2013. Preparativos               Seguinte: A Primeira Vez